sábado, 21 de junho de 2014

25/12/1915 - 19/06/2014

Meu querido avô Augusto,

Ontem tive que tomar uma das mais difíceis decisões da minha vida. Uma decisão que tantas vezes questionei em relação a ti, mas que no nosso país não é permitida por lei em seres humanos, somente em animais.
Ontem decidi que a Margot não merecia continuar a sofrer mais, não merecia continuar a perder as capacidades essenciais para se manter viva com dignidade. A Margot adormeceu profundamente para não mais voltar a acordar.
Estive com ela até ao fim, fiz questão, porque tu me ensinaste através das tuas histórias de tempos mais antigos, que temos de ser fortes e seguir os nossos ideais. Mas foi muito duro avô... muito.
Se conseguia imaginar uma situação semelhante aplicada a ti, confesso-te que no momento em que escrevo estas palavras não sei se seria capaz, e a verdade é que tantas vezes imaginei como seria se fosse possível fazê-lo. Parece que a vida se apercebeu dessa minha incerteza e hoje acordei com a notícia de que tinhas adormecido para sempre.
Apanhaste boleia da Margot, foi? Gostava de acreditar que sim, para aliviar um pouco a dor de vos ter perdido aos dois. Talvez parte de mim deseje que assim seja e que quando for a minha vez, estejam por perto para me orientar. Há dias em que acredito que assim será, há outros em que não.
Agora tu, tu já sabes se existe alguma coisa desse lado avô. Será que encontraste Deus? A bisa Helena estava à tua espera? Agora as tuas dúvidas são certezas (ou não!), pena é que não me possas vir contar.
Ficam as memórias da tua não crença ao longo de tantos anos e da tua mudança relativamente recente e tão radical em relação à fé.
Ficam as memórias de te ouvir subitamente dizer: "eu sei que não acreditava em nada, mas agora parece que sinto que há qualquer coisa. Eu agora acredito e até peço para me aliviarem as dores". E dizias que as dores eram aliviadas.
Ficam as memórias dos dias em que desejavas a morte porque já não aguentavas tanta dor e dos dias em que pedias para não morrer já: "oh avô, claro que não! Estás quase a fazer 100 anos e nesse dia vamos fazer uma grande festa, vais ver!" E tu rias porque naquele bocadinho de tempo acreditávamos que era possível.
Ficam as memórias das conversas que tínhamos sobre o tio David, sobre a tua mãe e os diferentes relacionamentos amorosos, sobre as oficinas, sobre os passeios que ainda íamos dar quando o tempo ficasse mais ameno, sobre os "catamarans" que fazias ao Rodrigo, sobre a tua carrinha Datsun onde levavas a passear os 4 netos na mala (isso é que eram dias animados!).
Ficam as memórias da tua admiração pelo camarada Álvaro Cunhal, pela tua militância no PCP e das visitas do Seabra com a revistinha do Avante.
Ficam as memórias de todas as pequenas "bugigangas" que me deste, e que guardo religiosamente, onde arranjavas sempre maneira de por o teu nome e a data.
Ficam as memórias do orgulho com que dizias esse teu nome, apesar de ser sempre motivo de estranheza ("como é que se escreve?": Co-pró-ni-mo Augusto Nunes dos Santos.
Ficam as memórias pelo teu gosto pelos livros e pela rádio, sempre ligada quando estavas em casa.
Ficam as memórias da tua rebeldia e teimosia quando eras contrariado ou quando não gostavas que os teus netos fossem castigados (para ti os netos estavam acima de tudo).
Ficam as memórias das lutas incansáveis que a minha mãe travou para te recuperar a cada recaída e do afecto imenso que ela te tinha.
Ficam as memórias da tua resistência e apego à vida (foram tantas as vezes que achámos que te perdíamos).
Ficam as memórias de um sonho não concretizado: o de te ter tido ainda mais perto para sermos nós a cuidar de ti. "Avô, hoje joguei no euromilhões." E tu perguntavas-me o que era isso. "É um concurso de sorte tipo... totobola. Lembras-te do totobola? Tu jogavas." Acenavas com a cabeça. "Se ganhar tiro-te logo daqui, compro uma casa grande e ficamos todos juntos." E tu sorrias.
Ficam as memórias de tanta coisa impossível de esquecer porque foste o melhor avô que alguém pode ter.
Meu querido avô, esta carta já vai longa e havia ainda tanto para dizer.
Conforta-me saber que o teu sofrimento acabou, que o encarceramento dentro de ti próprio chegou ao fim e a dependência de terceiros deixou de existir.
Vou pensar em ti como um espírito de luz que me acompanha e protege.
Vou agradecer sempre à vida a serenidade com que se extinguiu em ti.

Tua,
Pilantrinha do camoé
(19/06/2014)